segunda-feira, novembro 27, 2006

Mário Cesariny (1923-2006)

PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.



Morreu.

Banda sonora: "Vita Brevis" Rodrigo Leão

domingo, novembro 19, 2006

Oh Maria....

Uma Maria cansada da sua grafia.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Putana! Ha trovato un buco!

Le Havre, França, Setembro de 1989, Domingo à tarde - Um português, um espanhol, um italiano e uma irlandesa com cara de foca bébé, entram num cinema para verem "Dead Calm", thriller americano, dobrado em francês. Pura falta do que fazer.

Em comum, pouco mais têm do que uma convivência rápida de 15 dias gerada circunstancialmente por motivos vagamente semi-académicos.

Numa cena de elevada intensidade dramática, o herói luta pela vida, aprisionado no interior de um barco a afundar-se. Não tem hipótese nenhuma. Inexoravelmente a àgua sobe no compartimento e vai cobri-lo. Está quase ao nível do pescoço. É o fim prematuro. A audiência rebenta de ansiedade.

Putana! Ha trovato um buco! - Exclama incrédulo Diego, o italiano.

No último instante, o nosso herói encontra um tubinho que lhe permite continuar a respirar por mais uns minutinhos. O tempo suficiente para, recorrendo a artes só acessíveis a heróis, por milagre se livrar daquela enrascada. Eu teria morrido miseravelmente.

É impossivel fazer a contabilidade de todas as pessoas que entram e saem do nosso filme, entre personagens principais, secundárias e figurantes. A esmagadora maioria não deixa qualquer rasto. Um punhado delas fica congelada em fotografias ou produziu um sound byte que ficou por apagar.

Por onde anda essa gente? Alguém a conhece? Que é feito do Diego (2º da esquerda, agachado)? E da foca bébé?

Sugestão para a industriosa malta do Google: Deixem-se de merdinhas e passem às coisas verdadeiramente necessárias. Útil? Útil seria um link directo para cada uma das 6 biliões de pessoas que existem.

Condensada, a coisa é mais ou menos assim...

Reza mais ou menos assim:

sábado, novembro 11, 2006

Importa-se de repetir?

Por falar em traduções.
Aqui à atrasado, fui dos que comprei o DVD que trazia o "Expresso" de borla (poupadinho!). No caso vertente, o filme era o da imagem ao lado, cujo título em português agora não me lembro, mas como sou poliglota de primeira àgua, isso também não faz diferença por aí além. Enfim, dava-se o caso do filme em questão ser o "Lost in translation", título que dito por por mim soa a qualquer coisa com "loste in transleixão".
Tinha apanhado, aqui e ali, algumas referências encomiosas à fita - Festival de Cannes e etc - e como a cavalo dado não se olha os dentes, alegremente passou a ser de minha propriedade.
Como veio foi como ficou. Embrulhadinho no plástico, à espera de melhores dias.
Faço aqui um parentesis para lavrar um protesto.
Não sei de que raio é feito o diabo do plástico com que embrulham CDs e DVDs, mas só podem estar a gozar connosco. Aquilo deve ser feito, de certeza, em alguma liga de titânio, pois, de cada vez que tento ouvir pela primeira vez um disquinho recém comprado é o cabo dos trabalhos. Envolvo-me sempre numa luta homérica para quebrar o dito cujo plástico e só consigo os meus intentos através do manuseio de toda a sorte de armas brancas e instrumentos afiados, com risco da própria integridade física. Já só me falta usar machado.
Adiante!
O filme andou de Anás para Caifás, aos tombos por aqui e por ali. Foi tirado da caixa e ficou esquecido no meio de uma das cerca de trezentas pilhas de papeis que eu mantenho conscenciosamente desarrumadas à minha volta. Reencontrei-o por estes dias, entre a conta do telefone e outro papelucho que pregava os milagrosos benefícios de uma bugiganga qualquer.
Já que estava com a mão na massa e acredito que não se devem menosprezar os pequenos sinais do destino, pensei para mim "É agora!"
Lá o vi, com rara atenção.
Passa-se o seu enredo no Japão, lugar que é o principal personagem do filme. Distante e diferente como só o Japão consegue ser, aquela maluqueira caleidoscópica japonesa fornece o contraponto ideal para servir de pano de fundo a uma história corriqueira: uma homem e um mulher, cada um com vidas próprias que seguem caminhos absolutamente perpendiculares. Esses caminhos, numa inevitabilidade geométrica, cruzam-se por momentos e os caminhantes ficam suspensos no seu lento caminhar, como que a ganhar fôlego para o resto da jornada.
O filme vive da expectativa acerca do que acontecerá aos caminhos. Das perpendiculares resultarão duas linhas paralelas?
Os caminhos não podiam ser mais diferentes entre si: o do homem, longo e sinuoso, já povoado de outros viajantes que ao longo do trajecto se foram juntando por esta ou por aquela cumplicidade; o da mulher, ainda curto, fresco e viçoso, onde todas as derivações são ainda possíveis.
Chegados à encruzilhada, o que fazer?
A vida é avarenta a poupada em sinais de trânsito, particularmente nos cruzamentos. Parcas indicações nos são fornecidas sobre o melhor caminho a seguir, pelo que a maioria das vezes estamos por nossa própria conta e risco e, por isso, são frequentes as colisões.
Num tempo de GPS e mapas interactivos, o sistema operativo que temos carregado no nosso disco duro, embora revolucionário ao tempo da sua concepção, nunca foi objecto de nenhum upgrade. O Vida 1.0 ® continua o mesmo desde o tempo das cavernas e a respectiva documentação técnica está escrita em aramaico antigo, o que não facilita nada a tarefa. Vale-nos a existência de algumas traduções meramente empíricas, mas, a verdade é que em situações criticas, a maioria das vezes, a qualidade da tradução deixa muito a desejar e ficamos a navegar à vista. O jeito é confiar que no final tudo acabe por dar certo ou então não ineventar e apostar em comandos suficientemente conhecidos e já testados. Bem sei que isso pode desperdiçar recursos importantes do software, mas, quem pode garantir que não nos perdemos na tradução? E se, onde se lê "passar ao nível seguinte" não for na versão aramaica original um simples "delete". É que estas linguas antigas têm nuances semânticas que não lembram ao careca.
Complicado?
Não, na verdade é até bem simples.
O filme é um filme bom. É um filme de quase-amor... O que lhe terá ele segredado ao ouvido?
Banda Sonora: "A gente vai continuar" - Jorge Palma

quinta-feira, novembro 09, 2006

Pela estrada fora - Jack Kerouac


Banda sonora: "Walk on the wild side" - Lou Reed

Ele há certos livros que deveriam vir obrigatoriamente acompanhados de manual de instruções. Ou, pelo menos, ter na capa avisos sérios ao consumidor, do tipo: "Fumar mata" ou "Fumar provoca impotência".
Por exemplo: "Pela Estrada Fora" de Jack Kerouac é perigosíssimo. Se cai em mãos menos avisadas pode ter efeitos devastadores e de difícil reversibilidade .
Primeiro porque, em termos puramente literários, não presta. Parece um blog.
Depois, porque provoca reacções socialmente incorrectas no povo masculino no limiar da meia idade. Esta franja da população, importantíssima, como se sabe, para a sustentação da Humanidade, é muito dada a achaques e baralhações, desafinando com relativa facilidade ao primeiro solavanco da calçada. Daí que seja importantíssimo para o concerto do mundo mantê-la afastada de literatura subversiva e, já agora, de má qualidade.
O livreco em questão, manteve-se quieto e inviolado na minha estante por alguns anos. Não por falta de investidas minhas, mas porque eu só bebo do fino. Estou habituado a adjectivações surpreendentes e imagens criativas - o estilo salva mesmo a ideia mais medíocre. Ora sucede que nesse departamento, o nosso livro cultiva a aridez e o despojamento franciscano: é sujeito predicado e complemento directo e olha lá (não garanto que a nomenclatura gramática seja a mais actualizada, mas no meu tempo era assim). Coisa de americano.
Desgraçadamente, veio um dia de chuva aborrecido e o livro lá marchou.
Sensivelmente a um terço da jornada literária, perdemos o respeito ao valor do dinheiro, sacrilégio dos piores que se pode imaginar. Depois, mais ou menos a meio, cresce em nós uma necessidade absoluta e irreprimível de partir à toa para sítios inusitados e improváveis, tipo Buenos Aires ou Vilarinho de Samardã.
Os mais fracos de espírito não terão certamente força suficiente para, como eu, abandonar o demónio do livro na última etapa e confiná-lo à segurança da estante, de onde nunca deveria ter saído.
Mesmo assim, apesar disso, até hoje, ainda está por avaliar a real dimensão dos estragos causados.
Tal como para os tsunamis, deveria existir um sistema de alerta global para leituras impróprias.
Apenas me subsiste uma dúvida: pode dar-se o caso da tradução ser uma porcaria. É que as traduções nunca são de fiar. Não sei.
De maneiras que ficam avisados. E quem avisa... amigo é!